Deliberou a Assembleia da República manter, neste tempo de sacrifício de todos os portugueses, a cerimónia oficial de evocação do 25 de Abril. E mantê-la aqui nesta casa nos termos em que a tem realizado, embora com um número muito reduzido de Deputados e convidados.
Fê-lo também tendo presente o nunca ter interrompido as sessões plenárias durante o estado de emergência, o constituir a presente fórmula a que mais facilmente daria voz à multiplicidade acrescida de formações partidárias e o preencher o número de presentes as condições, há dias definidas, pelas autoridades sanitárias.
Compreendem os portugueses que o Presidente da República respeite a competência própria da Assembleia da República sobre a evocação, o local, o formato e a composição dos participantes, tal como por princípio sempre respeitaram os seus antecessores quando a Assembleia se encontrava em funções, isto é, fora de períodos eleitorais.
Compreendem ainda os portugueses que o Presidente da República, símbolo da unidade nacional, em caso algum concebesse sequer um desencontro com a casa da democracia, que traduz a diversidade nessa unidade, num momento da vida do país que exige convergência perante desafios tão graves como os da vida e da saúde e ainda o da vida digna no emprego, nos salários, nos rendimentos, nas famílias, nas empresas.
Esta hora impõe-nos unidade, unidade que não é nem unicidade nem unanimismo, mas unidade entre os portugueses que o têm lembrado no seu dia-a-dia e unidade entre os responsáveis políticos, uma convergência que tem sido decisiva para Portugal.
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhoras Deputados,
Portugueses,
O Presidente da República é, porém, obviamente sensível às dúvidas de alguns portugueses surgidas nas últimas semanas acerca da Sessão que hoje aqui nos reúne. Entende mesmo que é fundamental para continuarmos todos juntos – porque o caminho a fazer ainda é longo, difícil e imprevisível –, dizer o que pensa de cada uma dessas interrogações críticas.
Não é este um tempo excecional e em tempos excecionais não devem dispensar-se evocações costumeiras e para muitos ritualistas?
Não. É precisamente em tempos excecionais que se impõe evocar o que constitui mais do que um costume ou um ritual, o que é manifestamente essencial.
O 10 de Junho é essencial e vai ser evocado. O 1.º de Dezembro é essencial e vai ser evocado. O 5 de Outubro é essencial e vai ser evocado. O 25 de Abril é essencial e tinha de ser evocado.
Em tempos excecionais de dor, de sofrimento, de luto, de separação, de confinamento é que mais importa evocar a Pátria, a independência, a República, a liberdade e a democracia.
Mas sendo este um tempo em que vários de nós não vemos filhos ou netos, nem visitamos doentes ou lares há mais de um mês e só podemos, alguns de nós em grupo de risco, sair das nossas casas em termos muito mais limitados não é um tempo que rejeite o que nesta evocação traz consigo um espírito de festa de políticos?
Não. A presente evocação não é uma festa de políticos alheia ao clima de privação vivido na sociedade portuguesa.
Evocar o 25 de Abril é falar deste tempo não é ignorá-lo. É falar dos seus desafios presentes e futuros, do que fazemos e do que falta fazer, do que acertamos e do que erramos. É ainda ir às raízes buscar forças adicionais, encontrar mais razões para mobilizar, para enfrentar cansaços, desânimos e frustrações.
E os que aqui estamos vale a pena lembrá-lo, na diversidade de opiniões, não viemos de outro país, de outro mundo, de outra galáxia, fomos a livre escolha dos portugueses. E o que nos reúne hoje são os seus dramas, os seus anseios, as suas angústias pelas quais somos assumidamente responsáveis.
Mas mesmo aceitando que o espírito da Sessão é esse num tempo de confinamento de tantos portugueses, como foi na Páscoa e é agora no Ramadão, não estamos perante um mau exemplo em estado de emergência no plano dos princípios como no do acatamento das diretivas sanitárias?
Não. O estado de emergência implica um reforço extraordinário dos poderes do Governo. E porque vivemos em liberdade e democracia, e é com elas que queremos vencer estas crises, quanto maiores são os poderes do Governo, maiores devem ser os poderes da Assembleia da República para o controlar.
Por isso, a Assembleia da República nunca parou de funcionar e discutiu e votou o mais importante em sessões plenárias. Ao fazê-lo, trabalhou e trabalha para cumprir a sua missão nacional. E tem-no feito, e fá-lo hoje também, respeitando as diretivas sanitárias como obviamente se impõe.
Esta Sessão é o exemplo disso mesmo. Um bom e não um mau exemplo.
Aqui se ouviram vozes discordantes que falaram de Abril de 2020, de sucessos e também de fracassos passados e presentes, e de sonhos e temores futuros numa situação crítica da vida nacional.
O que seria verdadeiramente incompreensível e civicamente vergonhoso era haver todo um país a viver este tempo de sacrifício e de entrega, e a Assembleia da República demitir-se de exercer todos os seus poderes numa situação em que eles eram e são mais do que nunca imprescindíveis. E também nesta Sessão que sempre foi e será um momento crucial de controlo crítico e plural em liberdade e democracia.
Porque são esses os valores de Abril.
Evocar Abril não é apenas, nem sobretudo, saudar de modo especial o Presidente António Ramalho Eanes aquele dos seus militares que foi o primeiro Presidente da República democraticamente eleito em Portugal. Símbolo, também ele, do espírito de unidade deste nosso encontro cívico.
Evocar Abril não é apenas, nem sobretudo, agradecer ao representante dos Capitães de Abril, aqui presente, o seu gesto insubmisso e dos seus pares.
Evocar Abril não é apenas, nem sobretudo, recordar a Constituição que dois de nós aqui presentes em bancadas muito diferentes votámos há algumas décadas.
Evocar Abril não é apenas, nem sobretudo, recordar neste primeiro ano em que já não estão todos eles aqui connosco os quatro principais fundadores partidários do constitucionalismo pós-Abril que sucessivamente nos deixaram: Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Mário Soares, e este ano Diogo Freitas do Amaral.
Evocar Abril é, nesta circunstância, combater a crise na saúde que ainda atravessamos e vamos atravessar, e a crise económica e social que, por causa dela, começamos a viver e viveremos durante anos.
Evocar Abril é chorar os mortos que hão de merecer no fim desta provação uma homenagem coletiva daqueles que não puderam prestar a sua homenagem pessoal.
Evocar Abril é testar os que há a testar. É isolar os que há a isolar. É internar os que há a internar. É ventilar os que há a ventilar, pacientes do vírus e de outras doenças. É proteger os que há a proteger, incluindo os que vivem em lares ou instituições similares. É conjugar aberturas amadurecidas com precauções bem explicadas e bem compreendidas que há a conjugar. É acorrer aos desempregados, aos que estão em risco de o ser, às famílias aflitas, às empresas estranguladas. É lembrar os compatriotas que sofrem a pandemia por esse mundo fora. É exigir ainda mais uma Europa lúcida, solidária, empenhada e rápida a agir. É ultrapassar egoísmos, unilateralismos, visões fechadas do mundo e da vida que há a ultrapassar. É não imolar quem ficou para trás no altar do progresso, como lembrava o Papa Francisco, ou seja, não excluir ainda mais os mais excluídos.
Evocar Abril é testemunhar gratidão sem fim aos que salvaram, salvam e salvarão vidas e por isso deverão ser permanentemente acarinhados, agora e sempre, e os que ajudaram a salvar e a manter o básico na nossa sociedade: civis, Forças Armadas e Forças de Segurança.
Evocar Abril é reconhecer improvisos, impreparações, atrasos, mas também competências, devoções, determinações, trabalho e mais trabalho, contenção e mais contenção que pareciam e parecem intermináveis.
Evocar Abril é retirar, a seu tempo, as lições do que foi e é esta vivência única. As fragilidades, as desigualdades, as clivagens no nosso tecido social, as debilidades, as carências, as descoordenações, a rigidez, a lentidão em demasiadas das nossas instituições. Mas também os exemplos de criatividade, de versatilidade digital, de excelência na pesquisa biomédica, de inspirado e inspirador desarincanço, de generoso voluntariado, de ilimitada solidariedade, de permanente maturidade cívica, de inimaginável resistência, de incondicional disponibilidade para abraçar causas nacionais determinantes.
Evocar Abril é viver tudo isto em liberdade e democracia. Com comunicação social insubstituível, como é sempre em democracia, sem censura e redes sociais sem controlos. Com estado de emergência preventivo e não repressivo, adotado sem um voto contra nesta casa. Com confinamentos assumidos e não arregimentados, combatendo o vírus e não o escondendo.
Se isto não é razão para percebermos a diferença entre liberdade que assume e repressão que apaga e entre democracia que revela e ditadura que silencia, então nunca perceberemos que a nossa determinação nos combates que estamos a travar, e vamos vencer, vem da nossa história de quase novecentos anos, mas também de termos criado e preservado um Portugal livre e democrático.
Perante os problemas que defrontamos e os que vamos defrontar em liberdade e democracia temos de continuar a resistir ao desgaste, à fadiga, à lassidão. Temos de manter a máxima convergência possível. Temos de não ceder ao simplismo de separar velhos e novos, metropolitanos, urbanos e rurais, Regiões Autónomas sem embargo da sua autonomia específica, Porto, Norte, Centro, Alentejo, Algarve e Lisboa. E também não cair na tentação fácil de descriminar ideias, correntes de opinião ou pessoas, como se o 25 de Abril fosse só de uma parte de Portugal.
Nenhum de nós portugueses, a começar nos que mais podem e por isso mais devem ser responsabilizados, se estivesse nas suas mãos, teria querido viver estas crises. Nenhum. Mas agora que elas aí estão nas nossas vidas temos de as vencer.
Deixar de evocar o 25 de Abril, no tempo em que ele, porventura, mais está a ser posto à prova nos últimos 46 anos, seria um absurdo cívico. E o não fazer nesta casa da democracia com a presença de todos os principais poderes do Estado, e para além deles, seria um mau sinal, um péssimo sinal de falta de unidade no essencial e de compromisso de juntos, na nossa diferença, continuarmos uma missão que não está acabada. Como unidos e juntos têm estado os portugueses.
Seria ainda sobrepor o passageiro, o transitório, o efémero, ao duradouro, ao permanente, ao essencial, em vez de olhar longe e fundo como, nos momentos cruciais, os portugueses sempre fizeram. Fizemo-lo na improvável independência; na impossível expansão marítima; na inesgotável presença universal; na intemerata semente de liberdade que há duzentos anos foi lançada na Revolução do Porto; no inadiável gesto de Abril de 74.
Olhar longe e fundo. Eis por que razão o Presidente da República nunca hesitou um segundo sequer em aqui vir e aqui estar nesta evocação de Abril.
Não se troca um momento único para evocar o Abril de 74 falando dos sacrifícios de Abril de 2020, pela satisfação momentânea de pulsões passageiras, transitórias, efémeras, insistentes que pareçam ser. O efémero é efémero.
Se Abril tivesse atendido ao efémero, as nossas liberdade e democracia teriam tardado e muito e não seriam o que são.
Se Portugal tivesse, logo no início da sua história, atendido ao efémero, não teria sequer sido Portugal.
E agora, Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados, Portugueses,
Vamos ao essencial. Vamos vencer as crises que temos de vencer.