O Presidente da República devolveu à Assembleia da República, através da mensagem (ver abaixo), solicitando mais clarificação do seu caráter excecional e singular, o diploma que permite a manutenção de uma farmácia de dispensa de medicamentos ao público num hospital do Serviço Nacional de Saúde.
Mensagem enviada ao Presidente da Assembleia da República:
“Palácio de Belém, 3 de maio de 2019
A Sua Excelência
O Presidente da Assembleia da República,
ASSUNTO: Decreto da AR. Nº. 290/XIII - Manutenção de farmácias de dispensa de medicamentos ao público nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde
1. O Decreto-lei nº. 235/2006, de 6 de Dezembro, acolheu a instalação, abertura e funcionamento de farmácias de dispensa de medicamentos ao público nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde.
2. O Decreto-lei nº. 241/2009, de 16 de setembro, alterou o Decreto-lei nº. 235/2006, alargando a possibilidade da aplicação de tal regime a outros hospitais – por diploma próprio, nunca publicado –, mas, sobretudo, excluiu a exploração direta das farmácias pelos próprios hospitais, determinando a sua gestão por concessão, concessão essa precedida de concurso público e que não podia ser prorrogada, gozando os concessionários – à data de novo concurso – apenas de direito de preferência nele.
3. Com base neste regime legal foram constituídas sete concessões, das quais apenas uma – cujo contrato caducaria em 1 de Abril de 2019 – vigorava em 2016, ano em que o atual Governo aprovou o Decreto-lei nº. 75/2016, de 8 de Novembro.
4. O mencionado Decreto-lei nº. 75/2016, de 8 de Novembro, revogou o Decreto-lei nº. 241/2009, de 16 de Setembro, com um duplo fundamento: o de que se não haviam demonstrado, na prática, os princípios do interesse público e da acessibilidade, inspiradores do diploma revogado; e o de que era suficiente a rede de farmácias comunitárias existente.
Em homenagem aos direitos constituídos, salvaguardou, entretanto, até ao seu final, as concessões vigentes. O que abarcaria a única que se encontrava em tais circunstâncias.
5. Recentemente, três iniciativas legislativas debruçaram-se sobre a mesma matéria.
Duas, de igual teor, visando repristinar, em termos gerais e abstratos, o regime de 2009 – uma iniciativa legislativa popular e um projeto de lei do PAN. Uma terceira – um projeto de lei do Bloco de Esquerda – propondo o fornecimento de medicamentos ao público por parte das farmácias hospitalares que abastecem os próprios serviços dos hospitais.
Os dois projetos de lei, de iniciativa partidária, foram rejeitados.
6. Foi, pois, a iniciativa legislativa popular a única a subsistir. Essa iniciativa tinha conteúdo geral e abstrato, isto é, ao repristinar o regime de 2009, fazia-o para um universo indeterminável de situações de facto e de entidades destinatárias.
7. O Decreto da Assembleia da República nº. 290/XIII, ora submetido a promulgação, alterou radicalmente o conteúdo da aludida iniciativa legislativa popular:
1º Limitou-se a repristinar o regime legal de 2009, para as farmácias hospitalares existentes à data de 1 de Março de 2019, para efeitos da sua manutenção em funcionamento.
2º Prorrogou os contratos de concessão ainda vigentes, por três meses, ou até à conclusão do processo de concurso público, caso este fosse lançado dentro desse período.
3º Repristinou concessões cessadas desde 1 de Março de 2019, aplicando-lhes o mesmo regime da prorrogação das ainda vigentes.
Ou seja, onde a iniciativa legislativa popular consagrara uma solução geral e abstrata, consigna o Decreto ora apreciado uma solução concreta e individual. E concreta e individual porque aplicável a uma só situação de facto e a uma só entidade destinatária.
Mais ainda.
O Decreto em exame, pelo momento em que é aprovado e enviado para promulgação, não apenas se dirige a uma concessão concreta e a uma concessionária especifica existentes, permitindo a esta última exercer o direito de preferência em futura concessão – nos termos do regime de 2009 –, como repõe em vigor concessão caducada, desse modo garantindo o exercício do citado direito de preferência.
8. Tudo o que fica dito quer dizer que o Decreto da AR. Nº. 290/XIII, pela sua singularidade, suscita várias interrogações, de ordem social, e, portanto, política, que se passa a enunciar, e cuja dilucidação é essencial ao juízo sobre ele formulável.
1º Por que razão exclui a gestão direta da farmácia concreta, a que se dirige, pelo próprio hospital, em vez de escolher concessionar essa gestão?
2º Por que razão, optando pela concessão, aprova apenas uma em concreto, excluindo a repristinação do regime abstrato de concessões?
3º Por que razão, a fazer sentido a existência de uma só concessão em concreto, entende dever privilegiar uma determinada entidade privada, e, mais especificamente, uma entidade que já não goza de direito de preferência, por haver caducado a sua concessão?
E, porquê, ao fazê-lo por lei individual, afasta a solução de abertura de concurso público, sem direito de preferência, isto é, concurso a que a ex-concessionária poderia apresentar-se em total paridade com outros virtuais concorrentes, deixando, então, à autoridade administrativa competente a respetiva decisão?
9. Da resposta às interrogações enunciadas decorre a suficiência ou insuficiência da fundamentação política para uma lei singular, consagrando um regime obviamente excecional.
10. Quanto à primeira interrogação, é totalmente inexistente uma explicação sobre as razões que excluem a gestão direta, pelo hospital, da farmácia concreta visada. Se existem motivos sociais ponderosos para a manter em funcionamento, esses motivos encontram-se indissoluvelmente ligados a haver uma concessão?
O processo legislativo é omisso sobre esta precisa questão.
11. Quanto à segunda interrogação, é insuficiente o que se apura a partir do mesmo processo legislativo.
É perfeitamente legitima a mudança de orientação política, regressando à de 2009, contra a de 2016, nomeadamente porque nada impede que um Governo ou a sua base de apoio parlamentar mude de orientação na mesma legislatura. Ou que uma maioria parlamentar altere solução governativa durante ela.
Mas tal não explica por que razão se não contempla fórmula geral e abstrata, passível de se aplicar a mais do que uma situação de facto e a mais do que uma entidade destinatária.
Que quanto a ela possam existir motivos locais ponderosos para se manter uma concessão no futuro e isso não tenha afetado, ou venha a afetar a atividade das farmácias comunitárias – admite-se. Até porque da documentação disponível resulta o juízo favorável da comunidade à concessão e não resulta, claramente, a mencionada afetação, passada, presente ou futura.
Mas esses motivos locais, por si só, não explicam a não abertura da mesma solução em situações idênticas.
12. Quanto à terceira interrogação é ainda mais incompreensível por que razão, a manter-se uma específica concessão, nela tem de ser garantida posição privilegiada a uma específica entidade privada, que foi, mas já não é, concessionária, e a lei se substitua à autoridade administrativa na decisão do respetivo procedimento.
O argumento do direito de preferência – previsto no regime legal de 2009 que se pretende repristinar –, vale para concessionárias existentes, não para as que deixaram de o ser.
O argumento de que só vicissitudes do processo legislativo explicam que este tenha demorado tanto que a concessão, entretanto, caducou, também é circunstancial em excesso.
A questão é outra: há, na verdade, uma razão muito pesada, para além do reconhecimento a quem serviu cinco anos a comunidade, em situação que se sabia iria terminar, para afastar a plenitude das virtualidades de um concurso público, a concorrência entre todos os potenciais candidatos e a decisão administrativa correspondente?
O processo legislativo não só é claramente insuficiente neste particular, como dele parecem decorrer dúvidas, designadamente em declarações de voto, quanto à solidez das razões aduzíveis neste particular.
13. A inequívoca suficiência da fundamentação política impor-se-ia relativamente a uma lei singular, que contempla um regime excecional.
Não é o que ocorre com o presente diploma.
14. Assim, nos termos do artigo 136º., nº. 1, da Constituição da República Portuguesa, devolvo, sem promulgação, o Decreto da AR. Nº. 290/XIII – Manutenção de farmácias de dispensa de medicamentos ao público nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, solicitando à Assembleia da República que, querendo-o, proceda à dilucidação das questões mencionadas, por forma a fundamentar a aludida promulgação.
O Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa”
Ver aqui carta enviada ao Presidente da Assembleia da República (PDF)